quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Dicionário Analógico da Língua Portuguesa ganha nova edição, com prefácio de Chico Buarque de Holanda
Conceição Freitas
Publicação: 26/07/2010 08:34

Ninguém que tenha em mão o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa poderá dizer que está sem palavras. O falante e/ou escrevente não vai mais se sentir tentando capturar um grão de areia no ar, mas só até aprender a consultar a obra de ideias afins relançada pela editora Lexikon 60 anos depois da primeira edição. Esse gênero de dicionário não oferece o sentido da palavra, função que cabe ao dicionário de significados (Houaiss, Aurélio, Caldas Aulete). A tarefa dele é socorrer o usuário quando ele quer dizer alguma coisa, e a palavra, fugidia, lhe escapa. Ou quando a que encontra não é exatamente a que procura; ou quando quer dizer de outro modo aquilo que já foi dito; ou quando procura uma imagem diferente para não cair no clichê, ou quando, como faz Chico Buarque de Holanda, quer aprender palavras bonitas para embasbacar as moças e esmagar os rivais.

O filho de Sergio Buarque de Holanda é a estrela máxima que apresenta o Dicionário, com um texto delicioso, mas, para quem vive no Distrito Federal, o dicionário tem um interesse extra: o autor, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, é goiano da Cidade de Goiás. E, mais que isso, é um personagem e tanto pelos seus inacreditáveis feitos numa capital escondida entre serras e por seu temperamento distraído que fez dele personagem de causos que, mais de 50 anos depois de sua morte, estão sendo reunidos em livro, a ser lançado pelo biblioteconomista José Rincon Ferreira, neto do autor, a partir de anotações de José Sisenando Jaime. História como aquela em que ele, como de hábito, entrou na barbearia e esperou muito tempo para ser atendido até que uma moça bonita se aproximou e ele informou que estava esperando o barbeiro. Soube então que a casa não abrigava mais tesouras, navalhas e espumas de barbear. Era um prostíbulo.

O professor Ferreira ou o professor Ferreirão, como era conhecido, viveu toda a vida num casarão colonial do século 19 na cidade de Goiás. Quando estava grávida do primeiro filho, a mãe dele ficou viúva e teve de criar o garoto fazendo e vendendo doces. Dona Ritoca parecia ter uma noção do mundo para além dos limites da Serra Dourada. Mandou o filho de 17 anos estudar em Ouro Preto. Francisco voltou formado em agronomia, mas os interesses do jovem recém-formado eram muito mais amplos. "Ele era um homem do renascimento, um sujeito extraordinário para seu tempo e para o nosso tempo", diz a neta Ana Maria Vicentini, psicanalista que já morou em Brasília e hoje vive em São Paulo.

Anuário Histórico
Nos seus 77 anos vividos, Ferreirão foi engenheiro do serviço público, professor do Liceu de Goiás, jornalista, gramático, cronista, ensaísta, autor de várias obras, entre as quais o Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado e do Dicionário Analógico, que só foi publicado em 1950, oito anos depois de sua morte, graças ao interesse de um filólogo, o carioca Antenor Nascentes (1886/1972) que obteve da família as fichas com as anotações de Ferreira e providenciou a edição. Quem possuía e ainda possui a primeira edição do Dicionário Analógico era dono de uma obra rara e esgotada. A segunda edição só pode ser impressa depois de uma longa e vagarosa peleja judicial entre os herdeiros do autor e a editora Coordenada, de Brasília, que detinha os direitos de publicação.

Superada essa fase, a Lexicon Editora Digital, especializada em dicionários, comprou o direito de publicação da obra. Foram dois anos destinados a retirar perto de 20% das palavras ou termos já não utilizados pelos falantes da língua portuguesa, em especial alguns galicismos. E a inclusão de novos léxicos. A edição ficou com 764 páginas. Agora, a editora prepara o lançamento de uma versão on-line, para ser consultada gratuitamente e com permissão para colaboração de leitores. (Prática que a editora já adota no Aulete Digital).

Responsável pela atualização do dicionário e editor de obras de referências da Lexicon, Paulo Geiger explica que o uso de dicionário analógico é uma tradição das línguas anglo-saxônicas. Para fabricar o seu dicionário, o professor Ferreira usou como base a primeira obra do gênero publicada no Brasil, em 1936, do padre Carlos Spitzer. Mas a inspiração veio dos thesaurus (dicionário de ideias afins) de língua inglesa, modelo criado pelo lexicógrafo britânico Peter Mark Roget (1779/1869). A primeira tiragem do Dicionário Analógico sumiu das prateleiras em uma semana. "A segunda está no mesmo caminho", diz Paulo Geiger. Já foram vendidos 10 mil exemplares, número razoável em se tratando de dicionário.

terça-feira, 6 de julho de 2010

"Texto escrito em 1987 por João Ferreria de Azevedo (1921-1998), por ocasião do re-lançamento da obra Anuário Histórico-Geográfico do Estado de Goyaz, de autoria de seu pai, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo

PROFESSOR FERREIRA: O PENSADOR SOLITÁRIO


Naquela madrugada morna, ainda muito cedo para a missa das cinco, ela caminhava só, de volta para sua casa. Acabara de se despedir de seu único filho que partira em busca de mais saber. Em seu íntimo se desenrolava uma luta entre os sentimentos de uma mãe extremosa e o raciocínio de uma mente de pouca instrução, mas de visão incomum; não tinha sido ela mesma que engendrara tudo aquilo que acabaria naquela prematura separação?
Já do nascimento do seu filho, tomara a decisão de mandá-lo estudar fora; sua cidade, seu vale, eram muito pequenos, apenas parte de um mundo bem maior. Os conhecimentos que ali chegavam seriam, naturalmente, migalhas de um saber bem mais amplo. Seu filho precisava tomar contato com aquele mundo, beber nas fontes do saber.
Os parentes e conhecidos foram sempre contra sua intenção: ela não conhecia o mundo lá fora; aquele jovem franzino, de apenas dezesseis anos, não teria condições de lá sobreviver.
Agora de nada valia lembrar todas essas coisas. Ele acabara de seguir o seu destino.
Pela segunda vez ela se sentia só. A primeira foi quando seu marido faleceu, deixando-a viúva, após seis meses de casada. Naquela ocasião ela ainda tinha a companhia daquele filho no ventre. E agora? Não, também agora ela não estava totalmente só; Nossa Senhora, a Virgem Santíssima, a quem ela entregara o filho, seria a sua companheira de todas as horas.
Tudo naquela mulher era fé e determinação.
Seu filho tinha consciência disso. Pensava nestas coisas enquanto seguia o caminho para cumprir o desejo de sua mãe e que tinha se transformado também no seu próprio.
A tropa acabara de transpor a Serra Dourada, até então o mais belo componente da paisagem do seu vale.
Ele sabia que, somente a cavalo, teria que percorrer uma distância correspondente a um mês de viagem; não era muito. Já pressentia que aquela seria apenas uma pequena etapa de suas longas andanças em busca do saber e acabaria por ter duração de toda uma vida.
Caminhada realmente muito árdua.
Inicialmente, as saudades de sua mãe e de sua cidade o machucaram bastante. Além disso, os trabalhos de madrugada, nos correios, roubaram-lhe preciosas horas de estudo e de sono; quantas vezes teve que manter os pés dentro de uma bacia de água fria para vencer o sono e assim conseguir continuar estudando até altas horas da noite?
Entretanto, mais do que essas coisas, a caminhada se tornou realmente árdua porque nela ele não buscava simplesmente conhecimentos profissionais; buscava, isto sim, conhecer a razão das coisas. Dos ensinamentos que lhe eram ministrados ficavam sempre dúvidas e indagações que as exigências de um currículo a ser cumprido não davam margem para investigações mais aprofundadas. Isto deve tê-lo angustiado bastante. Daí o seu retorno à terra natal, logo após a conclusão do curso de agrimensura. Trazia consigo a convicção de que, na solidão de seu vale, encontraria as condições necessárias para meditar sobre aquelas dúvidas. Sentia a necessidade de realizar um trabalho intelectual mais livre de concepções consagradas; sua mente não conseguia se ater ao raciocínio essencialmente analítico-fragmentário; tendia sempre para o global, para a composição e não para a decomposição.
Já nos seus estudos iniciais de álgebra, havia reagido contra a concepção de Descartes, que considerava os números separados em dois grupos - os positivos e os negativos - e onde o zero se constituía em apenas um marco divisório e origem na contagem daqueles números. Para ele, todos os números positivos, negativos e o zero, compunham uma só seqüência contínua que crescia do infinito negativo, passando pelo zero, indo até ao infinito positivo.
Nesse sentido veio a publicar importante trabalho de filosofia da matemática, as “Considerações Gerais sobre as Quantidades Negativas”, onde demonstrou cabalmente que a sua concepção era mais racional e adequada que a cartesiana.
Também em relação às discussões que se travavam sobre a existência do ano zero no calendário da era cristã, adotou posição contrária à dominante e que, inclusive, era liderada pela inteligência brilhante de Camilo Flamarion. A propósito, escreveu o artigo “Chronologia” onde, através de argumentação lógica, provou que aquele ano realmente existiu. Esse artigo mereceu o referendo da incontestável autoridade no assunto, o astrônomo Henrique Morize, Diretor do Observatório Nacional.
Como no domínio dos números, no campo da lingüística, também sua visão fugiu ao normal, ao convencional. Entendia que as palavras tinham vínculos não apenas segundo uma sinonímia, isto é, num sentido estreito, particular, mas sim de forma mais ampla, ou seja, de acordo com idéias básicas, com grupos de idéias afins.
Assim entendendo, passou a viver, por mais de quinze anos, no mundo das palavras, procurando conhecê-las melhor, conhecer suas origens e seus diferentes graus de parentesco. Dessa convivência resultou uma obra monumental da lexicografia – o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa (Idéias Afins).
Como não podia deixar de ser, foi também com esse espírito filosófico que cumpriu a missão de mestre, lecionando matemática, português, latim, francês, inglês, geografia, cosmografia, etc... Jamais conseguiu em suas aulas, ater-se exclusivamente ao assunto programado; fazia sempre, com seus alunos, agradáveis passeios pelos campos do conhecimento humano.
Além dessas atividades essencialmente intelectuais, teve que desempenhar as funções de agrimensor. Também aqui não ficou preso aos estreitos limites dos trabalhos de medição de terra. À medida que percorria o Estado, colhia dados sobre suas características geográficas. Isto lhe permitiu elaborar a “Carta do Estado de Goyaz”, o primeiro documento dessa natureza de que se tem notícia. Entretanto, no seu dizer, “Goyaz ressentia-se da falta de um livro que descrevesse seu ubérrimo território, seus rios colossais, suas montanhas...”
Sem dúvida, essa empreitada teria que ser sua e, seria talvez para ele, uma das mais agradáveis, pois se tratava de compor o retrato de um dos grandes amores de sua vida: sua terra natal. Este retrato é o Anuário Histórico, Geográphico e Descriptivo do Estado de Goyaz, para 1910 que agora é reeditado. Por razões que se desconhece não foram publicados outros, referentes aos anos subseqüentes. No entanto, manuscritos por ele deixados, abordando classificações científicas de diferentes espécies da fauna e da flora, encontrados no Estado, dão margem a que se conclua que houve, de sua parte, o empenho de prosseguir nesse trabalho, com a ampliação do conteúdo.
Tudo isso é o pouco do muito que se tem para dizer sobre esse pensador que viu sempre além do convencional, que pensou livre do cartesianismo dominante e que, lamentavelmente naquela madrugada morna de quinze de novembro de 42, na hora da missa das cinco, partiu novamente, dessa vez, porém, para viver no todo que ele sempre buscou.

João Ferreira de Azevedo

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Os dicionários do meu pai.

Apresentação do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, escrita por Chico Buarque de Holanda, publicado na revista Piauí número 45:

Surpreendido pela nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, sinto como se revirassem meus baús e espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia.

Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa; o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto.

Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Por dentro estava em boas condições, apesar de algumas manchas amareladas, e de trazer na folha de rosto a palavra anauê, escrita a caneta-tinteiro.

Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse. Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento, exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, gusanos, cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros).

A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num Moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais.

Hoje sou surpreendido pelo anúncio desta nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A procura de um dicionário.

Não lembro bem o ano. Talvez 1990 ou 1989. A Universidade de Brasília ainda vivia um clima acadêmico de camaradagem e trocas e os recém anistiados chegavam. Alguns deles ficaram, outros tiveram passagens rápidas, algumas meteóricas, pelos departamentos. Em início de carreira, eu estava entusiasmada com toda aquela movimentação de gentes e de idéias. Foi assim que, num certo dia, conversando com o prof. Fábio Lucas, recém chegado com a anistia para uma brevíssima estada, fui surpreendida com uma informação. Ele me perguntava se eu tinha idéia de que um dos melhores dicionários da língua portuguesa era de um modesto professor de Goiás. Não, não tinha idéia. Bem, pois ele assim me afiançou e eu, confiante em uma memória que nunca tive, não anotei o nome do tal professor e muito menos do dicionário. Por mais de dez anos procurei descobrir de quem ele era. Perguntava a colegas, nos sebos, nas livrarias. Mas era inútil. Perdera completamente o contato com Fábio Lucas e, sem ele, nada das referências necessárias.
O tal dicionário tornara-se um mistério até que, em 2002, tive uma grande surpresa.
Conheci uma colega de trabalho na Universidade que me falou de sua luta para republicar o dicionário de seu avô: um objeto de desejo e de disputa entre aficionados pela língua portuguesa. Me mostrou um velho exemplar, bastante amarelado, que havia recebido de seu pai. E me contou, com muito entusiasmo, a história daquele homem. Muito cedo, filho de uma viúva, Francisco Ferreira dos Santos de Azevedo, foi estudar em Ouro Preto. Tornara-se agrimensor e retornara a Goiás Velho, cidade de seu antepassado bandeirante. Casou-se, lecionou matemática, física, português, latim, francês, inglês, geografia. Pesquisou, se embrenhou pelos sertões e escreveu muito. Daltônico e distraído, não saia de casa sem passar pelo crivo da esposa: uma vez vestira apenas paletó, chapéu e gravata. O resto da indumentária continuava no armário. Curioso e sistemático, as pessoas costumavam acertar seus relógios pela rotina do professor Ferreira. Foi assim, cheio de filhos e alunos, no centro do país que Ferreira de Azevedo escreveu vários estudos, entre eles seu precioso Dicionário Analógico (idéias afins).
Não demorei a descobrir que o avô de quem falava e o exemplar amarelado que ela me mostrava era o tal dicionário que, às cegas, procurava há anos. Pensei ter resolvido o problema e, com as referências anotadas na bolsa, fui à cata da preciosidade. Mas nada, os aficionados haviam se apossado dos raros exemplares existentes no mercado. Não tive saída: tive que esperar por mais oito anos para que o empenho da família de Francisco Ferreira dos Santos de Azevedo tivesse sucesso e uma nova edição aparecesse. Agora posso folhear o Dicionário Analógico, feliz em saber que a curiosidade e a inteligência do Professor não eram modestas, mas que um livre pensador pôde nos presentear com esta maravilha.

profa. Elizabeth Cancelli
Historiadora- USP

Francisco Ferreira dos Santos Azevedo

Este é um blog que reune artigos e informação a respeito do professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo autor do dicionário analógico da língua portuguesa.